Anvisa adota risco de morte como único critério para classificar agrotóxicos no Brasil
NoticiasO novo marco regulatório para avaliação e classificação toxicológica de agrotóxicos aprovado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) omite riscos à saúde humana, segundo especialistas ouvidos pelo HuffPost.
As mudanças, definidas nesta terça-feira (23), abrangem os rótulos dos produtos, assim como sua classificação, que passa a ser feita em categorias. Os produtos serão ordenados em “extremamente tóxicos” e “altamente tóxicos” (categorias 1 e 2), produtos “moderadamente tóxicos” (categoria 3) e produtos “pouco tóxicos” e “improvável de causar dano agudo” (categorias 4 e 5).
No modelo em vigor, a Anvisa leva em consideração estudos de mortalidade em diferentes tipos de exposição ao produto para definir o grau de toxicidade de um agrotóxico, assim como testes de irritação dos olhos e da pele.
Com as novas regras, a agência vai adotar novos critérios e usar apenas estudos de mortalidade para definir a classificação. Isso pode fazer que agrotóxicos extremamente tóxicos passem a ser incluídos em categorias mais baixas, como moderadamente tóxicos.
A Anvisa informou que a inclusão dos estudos de irritação dos olhos e da pele nos critérios faz a maioria dos agrotóxicos ser registrada como “extremamente tóxico”.
A agência vai adotar um formato chamado de GHS (Sistema Global de Classificação Harmonizado, em tradução livre), seguido por países da União Europeia e da Ásia. Segundo a Anvisa, a mudança fortalece as condições de comercialização de produtos nacionais no exterior, além de garantir mais clareza de informações.
Risco maior
Mas, para especialistas, as mudanças significam maiores riscos a agricultores e até mesmo aos consumidores. “O que a gente tem assistido é um grande movimento de flexibilização das regras para agrotóxicos, desde aceleração de aprovações [de novos pesticidas] até adoção desse padrão internacional, que na verdade, são apenas diretrizes”, criticou Marina Lacorte, coordenadora da campanha de Agricultura e Alimentação do Greenpeace.
Lacorte acusa o governo de usar tais normas internacionais a favor da bancada ruralista, no intuito de flexibilizar regras e classificações atuais e de “omitir” os verdadeiros riscos aos consumidores.
Ela ressalta que foram aprovados e usados no Brasil agrotóxicos classificados como cancerígenos pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc, na sigla em inglês), que é respeitada e seguida pelo formato agora adotado pela agência brasileira. “Ou seja, [o governo] adota a classificação que lhe convém. É realmente contraditório”, completa.
Segundo a especialista, um dos pontos mais preocupantes do marco regulatório é a nova classificação, que pode categorizar pesticidas extremamente tóxicos em categorias mais leves, não revelando o verdadeiro risco do produto.
De acordo a agência, já foram enviados dados para reclassificação de aproximadamente 1.950 agrotóxicos registrados no Brasil, quase 85% do volume total (2.300) em circulação.
«Retirar ou omitir o risco de um substância pode gerar um risco sério à saúde humana e ainda gerar mais brechas na legislação para aprovar mais agrotóxicos». Marina Lacorte, coordenadora da campanha de Agricultura e Alimentação do Greenpeace
“Isto é um sinal muito claro do governo de que estamos seguindo com essa agricultura agressiva e destrutiva”, completa Lacorte.
Rótulos também mudam
As novas normas também abrangem mudanças na rotulagem. Produtos extremamente e altamente tóxicos continuam com faixas vermelhas no rótulo, enquanto aqueles com classificação moderada ganhariam faixa amarela, e pouco tóxico e de improvável de causar dano agudo terão faixa azul e verde.
Além das cores, a sinalização de uma caveira, que hoje indica que o produto é tóxico, será excluída para as categorias de risco mais baixo. Para estas, será adotado um ponto de exclamação e a palavra “cuidado”.
Por outro lado, os rótulos precisarão ter comunicação mais clara com advertências e frases de perigo para auxiliar o manuseio do produto, como “mata se for ingerido” e “provoca queimaduras graves”.
Para o nutricionista do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor) Rafael Arantes, a perda do símbolo da caveira pode ser nociva e passar a mensagem de que o produto é seguro.
“No nosso entendimento, [a caveira] é uma informação universal e clara para o consumidor. Não se justifica retirar isso porque ela simplesmente não traz prejuízo nenhum, pelo contrário: o que tem no Brasil é um grande número de intoxicações por agrotóxicos, segundo dados fornecidos pelo SUS [Sistema Único de Saúde]”, disse ao HuffPost.
Segundo ele, embora a Anvisa tenha informado que a nova classificação é mais restritiva, o que se vê é o contrário. “A gente vê que menos informações estão ficando disponíveis, o que é um pouco incoerente para a Anivsa, que sobretudo tem como missão atender a saúde do brasileiro.”
O nutricionista ainda acrescenta que a reclassificação abre precedentes para que, mais para frente, a agência altere o limite de resíduos nos alimentos. “Esses números não vêm diminuindo, e com essas medidas e liberações recordes de agrotóxicos, é possível que os brasileiros sejam mais expostos a mais riscos”, disse.
Ele alerta que se proteger desse risco não é fácil, uma vez que grande parte dos agrotóxicos age de forma sistêmica, ou seja, penetram no interior do alimento, não somente na parte externa. “A única forma garantida de o consumidor não ingerir agrotóxicos e insumos químicos é consumir produtos orgânicos ou agroecológicos”, disse.
Outra maneira de se preservar é dar preferência às frutas, verduras e legumes da estação, uma vez que são mais fáceis de serem cultivados e não necessitam, em teoria, de tantos agrotóxicos.
“Na verdade, nosso sistema de produção deveria ser repensado. Já existe uma solução alternativa e real, que é a produção orgânica. É viável, mas precisa de incentivos”, diz o nutricionista.
Segundo ele, o que se vê hoje é uma lógica completamente invertida: enquanto ruralistas ganham incentivos fiscais e bonificações para o uso de agrotóxicos, agricultores orgânicos não recebem qualquer benefício fiscal e não conseguem sequer crédito para aumentar a produção. “[A mudança]Não acontece da noite para o dia, a gente precisa mudar de modelo e passar para uma alimentação mais saudável. Mas o governo precisa incentivar mais esses produtores.”
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